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Tratamentos disruptivos em doenças raras: fibrose cística

Clínica CDRA • 4 de agosto de 2023

A fibrose cística (FC) é uma doença rara, genética, grave e de caráter progressivo que pode colocar a vida do paciente em risco mesmo nos primeiros anos de vida. Ela decorre de um erro na produção de uma proteína CFTR que forma um canal de cloro responsável por manter o equilíbrio dos íons no corpo humano, ação fundamental para que haja uma adequada produção de muco e suor. Nestes pacientes o suor torna-se mais salgado, surgindo daí a denominação de como antigamente a enfermidade era conhecida: “doença do beijo salgado”. Dizia-se que a mãe que ao beijar o filho e sentisse este beijo salgado estava amaldiçoada a perder seu filho em poucos meses. Além do suor, outras secreções no corpo também são alteradas como o muco produzido pelos pulmões que se torna mais espesso. Em decorrência disso, acumula-se secreções nas vias aéreas levando a um quadro de infecções respiratórias recorrentes e bronquiectasias. Atualmente, a maior parte dos pacientes no Brasil falece antes dos 20 anos por insuficiência respiratória caso não possam ser encaminhados para lista de transplante pulmonar. Outros órgãos como pâncreas e fígado também podem ser acometidos, aumentando a complexidade da doença e seu manejo. 


Por se tratar de uma doença multissistêmica e progressiva, um dos maiores desafios do manejo da FC é a alta carga de tratamento aos quais os pacientes são submetidos. Atualmente, diversas drogas estão disponíveis para o tratamento da FC por se mostrarem eficazes e com comprovado e substancial ganho tanto na qualidade como na expectativa de vida. Um dos pilares do tratamento é melhorar a retirada de secreção dos pulmões. Devido ao acúmulo de secreção espessa nos pulmões, são usados diversos medicamentos por via inalatória com intuito de fluidificar e dissolver o muco. Outro pilar fundamental do tratamento da FC é tratamento gastrointestinal e suporte nutricional. Entretanto, para tentar manter a função pulmonar e de outros órgãos, estes pacientes recebem em média 4 inalações diferentes por dia e ingerem mais de 20 comprimidos distintos. É importante ressaltar que todos estes tratamentos atuais focam no controle das consequências da doença. Os remédios agem controlando as consequências e retardando a progressão dos sintomas. O defeito primário da doença não é atingido por estes tratamentos. Mesmo com todo esse arsenal terapêutico, apenas metade dos pacientes ultrapassa os 40 anos de idade no mundo. No Brasil os dados de sobrevida são piores, com menos de 30% dos pacientes fibrocísticos com idade superior a 18 anos. 


Atualmente, vive-se uma nova era no tratamento da FC em que um novo horizonte surge com promissoras expectativas no manejo da doença. Novas drogas que agem especificamente em determinadas mutações estão sendo estudadas com intuito de restabelecer a função da proteína CFTR. Desta forma, esses novos tratamentos agem diretamente na causa da doença com a possibilidade de alterar evolução natural da fibrose cística. 


Em 2019, foi aprovada nos EUA a terapia tripla elexacaftor / tezacaftor / ivacaftor, a primeira terapia capaz de tratar de forma efetiva a mutação mais comum na FC, presente em mais de 60% dos pacientes. O uso da terapia tripla mostrou elevados ganhos de função pulmonar e na melhora nutricional dos pacientes assim como controle das infecções respiratória e dos sintomas. Imaginem passar uma vida inteira tossindo diariamente e com os pulmões repletos de secreções, sempre cansado e com dificuldade de realizar até mesmo as tarefas mais simples do dia a dia. Após 3 dias do início deste novo tratamento, os pacientes já relatam uma melhora expressiva dos seus sintomas. A secreção desaparece, a tosse não mais existe, a disposição melhora e o esforço física não mais é incapacitante. A eficácia do tratamento é tamanha, que após iniciar a terapia os pacientes nem mais conseguem comprovar a existência da doença através do teste do suor (que mede o quão salgado o suor é). Os pacientes apresentam restauração da função da proteína CFTR e é como se a partir daquele momento a doença não mais existisse. 



É claro que algumas sequelas permanecessem e alguns outros tratamentos precisam ser mantidos. Entretanto, o paciente passa a viver numa situação muito mais favorável, bem distinta da sombra de um futuro limitante de uma doença grave e progressiva. Além disso, o uso da terapia tripla em estágios mais precoces da doença tem o potencial de até mesmo evitar que as consequências se estabeleçam ao longo dos anos. No Brasil, a FC é diagnosticada através do teste do pezinho e temos a chance de garantir que milhares de indivíduos que convivem com essa doença possam voltar a sonhar com uma vida sem limitações. Os benefícios clínicos com essa nova classe de tratamento são incontestáveis. Poucas vezes na medicina, nos deparamos com um tratamento tão disruptivo e com potencial de alterar a evolução natural de uma doença tão grave. 


O remédio atualmente encontra-se em avaliação pela CONITEC para incorporação no SUS. Medicamentos para doenças raras são conhecidos pelos seus elevados custos visto que o processo de desenvolvimento é caro e poucos indivíduos são elegíveis ao tratamento. Entretanto, precisamos lembrar que um dos princípios do SUS é a equidade. Equidade não significa tratarmos todos de forma igual. Mas, sim, contempla a realidade que locais e pessoas diferentes têm necessidades diferentes, e por isso soluções e esforços diferentes devem ser feitos de acordo com o contexto em questão. A não incorporação de um tratamento tão eficaz e potencialmente modificador de tantas vidas é inaceitável.


Por outro lado, como cidadãos, entendemos que a saúde tem custo e que precisamos agir de forma coletiva para encontrarmos saídas apropriadas para que ninguém viva à margem de suas potencialidades. Diante disso, a ação conjunta e uma proximidade entre os diversos participantes desse cenário são fundamentais. O governo, sociedades médicas, associações de pacientes e empresas farmacêuticas devem trabalhar juntas para que consigamos trazer para prática aquilo que a ciência conseguiu trazer de avanços. A fibrose cística é apenas um exemplo e várias outros novos tratamentos para outras doenças raras também vêm sendo descobertos e com resultados igualmente promissores.  Ter uma condição de saúde debilitante é muito difícil, pior ainda é saber que existe algo que pode ser feito e não o acessar.


Por Dr Rodrigo Athanazio para a Revista VEJA Saúde. Clique aqui e tenha acesso à matéria completa!


Responsável Técnico:
Dr. Rodrigo Abensur Athanazio

CRM 122658 | RQE 42009 e 42010

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